Moradores das periferias do Rio Grande do Sul relatam dificuldades em meio às enchentes no estado

 Moradores das periferias do Rio Grande do Sul relatam dificuldades em meio às enchentes no estado

Situação agravou problemas estruturais existentes nas comunidades

Desde o início das fortes enchentes no Rio Grande do Sul, a comunidade Morro da Cruz, localizada na zona leste de Porto Alegre, tem abrigado famílias de diferentes cidades. Morador do bairro Mathias Velho, em Canoas, o pastor Sandro Pedroso, 38, saiu com a esposa e os dois filhos na tarde de sexta-feira, 3 de maio, em direção à casa da sogra moradora do Morro da Cruz. 

“Acompanhava as informações sobre as fortes chuvas por meio das redes sociais do prefeito [Jairo Jorge], mas até quinta-feira, não tínhamos noção da gravidade da situação. Já imaginava que ia alagar porque sempre acontece quando chove muito, mas não nessa proporção. O aviso para evacuar as casas chegou na sexta-feira”, diz. 

Ele recorda que após o alerta foi até a igreja Comunidade Nova Canaã e começou a levantar equipamentos que estavam no chão a fim de protegê-los da inundação. Voltou para casa e, acompanhado da esposa e dos filhos, saiu de carro em direção à Porto Alegre. 

“Só levamos a roupa do corpo e pegamos algumas adicionais para tomar banho. No que eu saí correndo já tinha fila nos postos de combustíveis, não tinha mais gasolina. Já estava um caos, muitas pessoas saindo com medo do alagamento. Não conseguimos pegar nem documentos, perdemos literalmente tudo”, conta.

Morando com a família, a sogra e o cunhado numa casa de quatro cômodos, Pedroso convive com o sentimento de incerteza sobre o futuro e torce para que as águas baixem para que possam retomar a vida. A casa onde vive fica em um pátio com mais duas residências. Na casa da frente moram a cunhada e três filhos e na de trás mora o sogro.

Conhecida pela encenação da Paixão de Cristo, evento tradicional que chegou a sua 65ª edição este ano e é produzido por atores e moradores, a estimativa é que o Morro da Cruz tenha ao menos 35 mil habitantes.

Localizada acima do nível do mar, a comunidade foi menos atingida, o que fez com que famílias viessem ficar com parentes ou em abrigos. No entanto, o momento vivido pelo estado tem agravado problemas já existentes no local. “Tu tem um lar que morava cinco e da noite para o dia estava com 15 pessoas morando sob o mesmo teto. As famílias que estão recebendo essas pessoas de fora têm tido bastante dificuldade de alimento, teve falta de água”, conta o articulador periférico, líder comunitário e membro do G10 Favelas, Michel Couto, 38. 

Fundador da Agência Formô de Comunicação e do Hub Formô, espaço de inovação e empreendedorismo periférico no Morro da Cruz, Couto tem atuado ao lado de outros voluntários na logística de distribuição de doações, cadastro de famílias desabrigadas e prestação de informações aos moradores da comunidade. Com o apoio do G10 Favelas, ele diz que a estimativa é que cerca de 250 famílias estejam sendo atendidas pelo bloco de líderes e empreendedores de impacto das favelas brasileiras e que 117 famílias já foram cadastradas. 

As ações têm sido desenvolvidas por moradores, igrejas, organizações e empresários locais. O líder comunitário estima que há mais de 80 voluntários atuando diretamente na comunidade e, de forma indireta, através do Hub Formô, são 150 pessoas trabalhando em rede com outras organizações da sociedade civil e mantendo contato com outras organizações e órgãos governamentais a fim de levar informações às pessoas.

Um grupo formado por cerca de 12 homens circulou de jet ski por cidades da Grande Porto Alegre como: Canoas, Eldorado do Sul, Sarandi, Guaiba e mais a fim de ajudar no resgate. “Os moradores colocaram o jet ski na água, que subiu tanto que ficou acima das paradas de ônibus, e foram andando de jet ski desviando dos fios elétricos. Contaram que viram a parada de ônibus com a luz ligada embaixo d’água”, diz.

Para o morador, além dos investimentos em infraestrutura e melhoria dos serviços básicos, será necessário ações específicas do poder público direcionadas à saúde mental principalmente das pessoas que moram nas periferias. “É preciso construir uma rede de  multiplicadores para o acolhimento psicológico profissional. É algo que impacta diretamente a saúde emocional de quem está recebendo pessoas que vêm com relatos da enchente”, reflete. 

Todos os dias, das 9h às 20h, o pastor Sandro e uma equipe de 30 voluntários realizam atendimentos com moradores na sede da Comunidade Nova Canaã, no Morro da Cruz. “Algumas pessoas não precisam só da ajuda física, que é o alimento, a roupa. Mas um abraço, um aperto de mão, uma oração também. Pessoas que tinham um pouco a mais perderam tudo. Quem já não tinha, ficou sem nada mesmo. É algo muito difícil de lidar e temos feito muitos trabalhos de fé”, diz. 

Envolvidos na arrecadação e distribuição das doações que estão sendo recebidas de forma presencial na igreja e por Pix, Michel e Sandro contam que o apoio está sendo direcionado não só às pessoas desabrigadas, mas também aos moradores, algo que aumentou muito a demanda. 

“Atendemos pessoas que na casa antes moravam quatro, hoje tem 25. Fazemos o possível para poder ajudar todo mundo. Na sexta-feira (17) não abrimos [a igreja] pela manhã porque não tinha mais alimento. Todos os kits tinham sido entregues. Pedimos a quem dava para pedir”, diz Sandro, que complementa que além da procura por alimentos, marmitas e peças de roupas, algumas pessoas ficaram sem gás de cozinha para preparar as refeições.  “Atendemos uma família de Canoas que chegou na igreja em busca de itens de higiene pessoal, roupas, alimento. Fornecemos o que conseguimos porque estamos com baixo nível de produtos alimentícios. Fui até a casa deles e me deparei com 29 pessoas em uma casa de dois cômodos dependendo exclusivamente de doações”, conta.

Os moradores tiveram que lidar com o racionamento de água potável o que impedia atividades rotineiras como se hidratar, tomar banho e limpar a casa. “A água vinha e depois ficava dois, três dias sem. Tinha de manhã e depois faltava o dia inteiro. Nos mercados conseguimos encontrar alimentos, mas não água potável para beber”, conta a profissional de marketing, Ananda Santos, 24. Os moradores já estão tendo acesso à água de forma ininterrupta. 

A comunicação do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) diz que os sistemas estão com intermitências, mas todas as zonas periféricas foram abastecidas com caminhões-pipa. No momento, o desabastecimento se concentra na região do Moinhos de Vento, bairro no centro. 

Morador do bairro Pôr do Sol, em Caxias do Sul, Ralf Mancio, 37, trabalha na área de audiovisual como freelancer. Nos últimos dias têm lidado com oscilações na rede de internet com falhas e queda na conexão, o que interferiu em sua atividade. O acesso aos serviços básicos são feitos por meio de doação e relata também oscilação no fornecimento de água e que, às vezes, chega a faltar no bairro.

A advogada Luana Nicole de Oliveira, 41, conta que o bairro Pioneiro, em Caxias do Sul, onde mora, foi pouco afetado pelas chuvas, mas ainda sim precisou lidar com oscilações no fornecimento de água e de internet. Já em relação aos alimentos, conta que chegou a faltar nos mercados pelo fato dos caminhões não conseguirem chegar ou pela quantidade de compras que as pessoas fazem para estocar ou doar. Luana atua como voluntária na igreja evangélica Be One Church auxiliando na triagem e separação dos kits de doações que são direcionados às regiões mais afetadas. “Todos os voluntários estão abrindo mão de suas vidas e dando o seu melhor. Estamos todos exaustos, mas seguimos trabalhando incansavelmente, porque o cenário das regiões mais afetadas é realmente um cenário de guerra”, diz. As doações chegam de várias partes do país e a igreja também disponibilizou uma chave Pix em suas redes sociais para arrecadação.

No Morro da Cruz muitos voluntários trabalham de forma autônoma e, sem as condições necessárias, para voltar à sua função começam a passar por dificuldades “Temos um movimento como comunidade de não fechar os olhos ou achar que só as pessoas desabrigadas precisam de ajuda. O problema social se agravou e essas pessoas também precisam ser assistidas”, afirma Michel.

A prefeitura de Porto Alegre anunciou na terça-feira (21) novas medidas em prol das famílias atingidas pela enchente como: o reajuste no valor do Estadia Solidária, a flexibilização nas normas de acesso ao Bônus-Moradia e ampliação da faixa de renda do Compra Compartilhada. 

Em nota, a Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades informou que “é responsável pela modalidade de contenção de encostas da ação 8865 – Apoio ao Planejamento e Execução de Obras de Contenção de Encostas em Áreas Urbanas”. Ações relacionadas a inundações, enxurradas e alagamentos são de responsabilidade do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. 

Disse que iniciativas cruciais para prevenir desastres e preservar vidas foram descontinuadas entre 2019 e 2022 e que o governo anterior não realizou seleções para novas obras de contenção de encostas e drenagem e nem para novos projetos do Minha Casa Minha Vida voltado a famílias com renda mensal de até R$ 2.640, que costumam ser “as mais atingidas quando há catástrofes provocadas por desastres naturais”.

Entre as medidas adotadas pelo Governo Federal no enfrentamento à catástrofe ambiental estão a criação da Secretaria Extraordinária da Presidência da República para apoio à reconstrução do Rio Grande do Sul por meio da Medida Provisória Nº 1.220 de 15 de maio de 2024. O órgão será responsável por, entre outras coisas, coordenar as ações a serem executadas pela administração pública federal, planejamento de ações em conjunto com os Ministérios competentes e articulação entre os Governos federal, estadual e municipais do Rio Grande do Sul. Paulo Pimenta deixa o cargo de ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e assume a nova secretaria. 

Foi criado o Auxílio Reconstrução destinado às famílias desalojadas ou desabrigadas. Cada família atingida receberá uma parcela única de R$5.100,00. Segundo o governo federal,  369 municípios gaúchos estão habilitados a receber, por terem os estados de emergência ou calamidade pública reconhecidos pela Defesa Civil nacional até 15 de maio. No site oficial do Auxílio Reconstrução lançado na terça-feira (21) será publicada a lista dos municípios e as instruções dos próximos passos.

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