Maiores favelas de SP continuam isoladas por serviços de carro por aplicativo

 Maiores favelas de SP continuam isoladas por serviços de carro por aplicativo

Foto: Anderson Jorge / Cria Brasil

Dez anos após a chegada de modalidade, moradores de Heliópolis e Paraisópolis ainda reclamam de falta de motoristas; OUTRO LADO: empresa negam discriminação

4 a cada 10 brasileiros utilizam serviços de mobilidade e 8 a cada 10 entrevistados afirmam que sua vida melhorou. É o que diz a pesquisa “Mobilidade, a opinião da população sobre os impactos dos aplicativos nos 10 anos da Uber no Brasil”, realizada e divulgada pelo Instituto Datafolha em abril deste ano. Menciona ainda que, para 84% dos entrevistados, o transporte por aplicativo tornou a vida mais confortável, facilitando a ida para consultas médicas e questões relacionadas à saúde. No entanto, para moradores de Heliópolis e Paraisópolis, as duas maiores favelas da cidade de São Paulo, o acesso ao serviço ainda enfrenta dificuldades. 

Recusa de motoristas para atender pedidos de viagem em regiões periféricas e cancelamentos são algumas das principais reclamações dos passageiros que residem nas periferias. “Às vezes é muito melhor você falar com algum conhecido ali de dentro do bairro mesmo para alguma ajuda, alguma emergência, do que pedir carro de aplicativo”, revela Vitória Vieira, 22, moradora de Paraisópolis. 

Em 2019, a Uber lançou os “Pontos de Encontro”, projeto criado a fim de ampliar o acesso dos moradores de comunidades ao serviço do aplicativo. Os pontos ficam em endereços conhecidos entre a população local como lanchonetes, igrejas, postos de saúde ou comércio e funcionam como opções para facilitar o embarque e desembarque dos passageiros.

A primeira versão foi realizada em Heliópolis, a maior favela de São Paulo com 200 mil habitantes, localizada no distrito do Sacomã, zona sul da cidade. Apesar de ocupar cerca de 1 milhão de metros quadrados, os “Pontos de Encontro” disponibilizados pela Uber atendem apenas no entorno do bairro e os moradores têm que se deslocar por grandes distâncias dentro da favela para encontrar o carro solicitado.

“Se tiver uma emergência, esquece, não tem muito o que fazer. Se for sair de casa e utilizar o aplicativo da Uber em específico, tem que tentar pedir com pelo menos meia hora de antecedência porque terá vários cancelamentos dos motoristas mesmo com esses pontos fixos”, conta Ozéias Santos, 36, morador de Heliópolis há 24 anos.

O site oficial da Uber indica que ao redor de Heliópolis existem sete “Pontos de Encontro” e, com a configuração atual do serviço, uma pessoa que mora no meio da comunidade pode levar cerca de 10 minutos caminhando até encontrar um ponto de encontro para embarcar em um carro de aplicativo.

A falta de informação em relação aos “Pontos de Encontro” também é uma crítica feita por moradores. “Se você chega em um ponto da Uber hoje através do mapa, chega lá e não tem sinalização nenhuma e não tem nada escrito, ou seja, as pessoas que vêm de fora querem utilizar o aplicativo aqui em Heliópolis, eles não tem essa informação, ficam totalmente perdidos”, analisa Santos.  

Em Paraisópolis, também na zona sul da cidade, a situação é parecida. Para embarcar, é preciso sair da favela e ir em direção até as vias que dão acesso ao bairro do Morumbi, como a Avenida Hebe Camargo e a Avenida Giovanni Gronchi. “Quem conhece a região não recusa as viagens, mas o Uber, em específico, é muito mais difícil. Várias vezes que eu precisei pegar Uber, eu tive que ir até a Avenida Giovanni Gronchi para conseguir um carro de aplicativo”, conta Vitória sobre a dificuldade em embarcar em um carro de aplicativo no bairro. 

A jovem ressalta que o problema é antigo e que em casos de emergência a dificuldade em acessar o serviço ganha outros desdobramentos. “Na pandemia minha madrasta estava grávida do meu irmão e era de risco. A bolsa dela estourou e tivemos que levá-la para o hospital, mas não estava conseguindo pedir um Uber. Tentamos três vezes e não conseguimos”, lembra Vitória que ressalta que não estavam no “meio de Paraisópolis, mas bem perto da Avenida Giovanni Gronchi”. 

“E como era um caso de emergência, eu fui em um bar que estava aberto e pedi ajuda pra um rapaz que estava de carro.”Conta Vitória 

Ex-motorista de carro por aplicativo, Saulo Matos, 29, relata que os próprios motoristas conversam entre si para evitar regiões de periferia que consideram perigosas. “Se eu não conhecia a quebrada, eu não queria entrar lá, mas por questão de precaução”, diz ele que participava de um grupo de WhatsApp com outros motoristas de aplicativo. “Tem motoristas de todos os cantos e llá mesmo você já ficava sabendo de muita coisa. Os caras mandavam uns avisos dizendo “Não vai entrar no canto que tá complicado”, explica.

Ao voltar para casa depois do trabalho, Glaison Ribeiro,auxiliar de cozinha, 22, teve dificuldades em usar o serviço. “Era 2h da manhã e tive que chamar o Uber. Tentei três vezes e os dois primeiros recusaram. O terceiro aceitou, mas questionou onde eu ia descer. Disse que não fazia corrida em Paraisópolis, mas como o valor da corrida era um tanto alto, ele aceitou”, conta o morador.

Alguns passageiros buscam alternativas para driblar a falta de atendimento e conseguir chegar em casa em segurança. “Teve uma vez que tinha acabado de sair de um show no estádio do Morumbi. Fiquei desesperada porque já era meia-noite e meia e estava ainda lá tentando pedir (o carro)”, lembra Gislaine Melo, 25, moradora do bairro Jardim Horizonte Azul, distrito do Jardim  Ângela, no extremo sul da cidade de São Paulo.  “Consegui voltar pra casa porque tenho um conhecido que trabalha como Uber. Mandei mensagem e ele estava em Embu das Artes. Pedi para me buscar no estádio, mas é um valor a mais que eu acabo pagando”, finaliza.

Em contato com as empresas de transporte por aplicativos, a reportagem solicitou um posicionamento sobre o projeto de “Pontos de Encontro” da Uber e sobre o preconceito enfrentado por passageiros ao solicitar um carro até o bairro em que residem. 

Em nota, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), representante das empresas que prestam serviços de transporte por carro por aplicativo, como 99 e Uber, disse que “as empresas possuem diretrizes de atuação para os motoristas parceiros que proíbem qualquer prática discriminatória contra usuários baseada no local de destino ou origem, assim como em relação a gênero, raça, orientação sexual ou idade”. 

Questionada sobre o projeto “Pontos de Encontro” da Uber e sobre as dificuldades enfrentadas pelos moradores das periferias, ressalta que “em determinadas localidades, estabelecem pontos de embarque e desembarque para melhorar a experiência dos usuários e que possuem canais abertos de comunicação para que melhorias possam ser implementadas”.

Procurada pela reportagem, a assessoria da Uber disse que a missão da empresa é conectar pessoas a um transporte acessível e confiável. “Para aumentar a segurança de motoristas parceiros e usuários, a Uber conta com uma tecnologia de machine learning que ajuda a identificar riscos com base na análise dos dados das milhões de viagens já realizadas por meio do aplicativo. A ferramenta bloqueia as viagens consideradas potencialmente mais arriscadas, a menos que o usuário forneça detalhes adicionais de identificação”.

Reitera que os motoristas parceiros são independentes e autônomos e que têm autonomia para decidir quando ficam online, e também quando aceitar ou recusar viagens. 

Em nota, a 99, empresa de transporte por aplicativo, disse que não bloqueia regiões específicas das cidades e que os condutores recebem notificações sobre locais considerados de maior risco que têm como base os dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) e informações internas do aplicativo. 

“Os mapeamentos dessas áreas são dinâmicos e passam por constantes revisões e atualizações. O zoneamento não é fixo  e varia conforme notificações e levantamentos sazonais, como, por exemplo, horário do dia. Vale destacar que, segundo dados internos da 99, a taxa de cancelamento de corridas por motoristas em zonas de risco e em outras regiões da cidade tem índices muito semelhantes – e acompanhamos esses números com cuidado”. A empresa finaliza dizendo que trabalha com transparência e possui uma política de tolerância zero a qualquer tipo de discriminação, seja ela de raça, gênero, religião, orientação sexual, idade, classe social, local de moradia, entre outras.

*Reportagem publicada em parceria com o jornal Folha de S.Paulo.

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Repórter do Espaço do Povo, é cria do Jardim Ângela, formado em jornalismo e tem vivência em redação e assessoria de imprensa.

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