Após pandemia e tropeços do ensino médio, jovens da periferia vivem ansiedade e insegurança

 Após pandemia e tropeços do ensino médio, jovens da periferia vivem ansiedade e insegurança

Foto: Karime Xavier/Folhapress

Entre o medo e a falta de recursos, eles passaram pelo desafio de estudar na pandemia nos seus anos finais do ensino fundamental. Mas os anos seguintes também foram duros: entraram num modelo novo de ensino médio, servindo de teste para uma reforma que prometia aproximar o currículo da realidade e do interesse dos estudantes, mas provocou um efeito bem diferente.

Faltando pouco para a conclusão do ensino médio, Larissa, 17, Gabriel e Guilherme, 19, vivem uma mistura de ansiedade e insegurança em relação ao futuro. Alunos da rede pública paulista, os três entraram em épocas distintas em um cursinho popular em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, e planejam fazer o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) no fim do ano.

Larissa ainda não definiu o curso, Gabriel quer cursar direito e Guilherme planeja em fazer licenciatura em história. “Penso em voltar dando aula na escola que estudei em Paraisópolis. Já que falta professor, vou voltar para diminuir isso”, diz.

Para Larissa Pinheiro, faltou investimento em estrutura durante a execução. “No papel pode ser uma boa ideia, mas na prática, quando tivemos que escolher as matérias, foi uma confusão”, diz a moradora da Vila Andrade, zona sul de São Paulo. Ela se refere a um dos pontos centrais da reforma, a adoção dos itinerários formativos, conjunto de disciplinas e projetos que, em tese, seriam escolhidos pelos estudantes de acordo com a área de conhecimento que gostariam de aprofundar.

Na prática, no entanto, os alunos relatam falta de recursos nas escolas, poucas opções disponíveis de escolha e algumas disciplinas não dialogam com seus interesses. “Na minha escola, juntaram ciências humanas com linguagens e matemática com ciências da natureza. Escolhi matemática e tenho mais matéria de biologia. Você escolhe uma coisa e na prática acaba fazendo outra coisa”, conta Larissa.

Para Guilherme Mendes, a divisão fez com que cursassem disciplinas que, para ele, não serão aplicadas no futuro. “Gostaria de ter tido mais acesso às matérias de história, geografia, química e biologia. Enquanto isso, tive algumas matérias que não fazem tanto sentido”, diz.

Como a Folha mostrou em diversas reportagens, as escolas do passaram a oferecer matérias como “brigadeiro gourmet” e “como se tornar um milionário”. Sem vagas para todos, também houve casos em que os itinerários foram sorteados ou impostos aos alunos.

Gostaria de ter tido mais acesso às matérias de história, geografia, química e biologia. Enquanto isso, tive algumas matérias que não fazem tanto sentido

Instituída em 2017 por medida provisória, no governo Michel Temer (MDB), a reforma do ensino médio começou a ser implantada no país em 2022. Previa que 60% do currículo fosse dedicado a disciplinas básicas, como português e matemática, enquanto 40% ficariam com os itinerários.

Após críticas e pressão por mudanças, o governo Lula (PT) apresentou ao Congresso um novo projeto que, depois de negociações e ajustes, foi aprovado no início de julho. A “reforma da reforma” do ensino médio aumenta a grade comum para 80%, restringe os itinerários e, se sancionada, deve valer a partir de 2025.

Morador de Paraisópolis, Guilherme concilia os estudos com o trabalho como assistente de bibliotecário na própria comunidade. Há pouco mais de dois anos no cargo, o jovem teve que organizar sua rotina. “[A falta de] tempo e o cansaço dificultam muito, mas procurei formas de aproveitar melhor meu tempo. Consigo acordar um pouco mais cedo para revisar uma questão e uso parte da minha hora de almoço para revisar o conteúdo ou ler um livro”, diz.

Assim como Larissa e Guilherme, Gabriel Viana, 19, também cursou os anos finais do ensino fundamental durante a pandemia de Covid-19. Morador da comunidade, ele relata que teve dificuldades com o ensino remoto para absorver o conteúdo, estudar por conta própria e tirar dúvidas com os professores.

“Percebo isso quando é matéria de matemática. Na pandemia não aprendi a base dos cálculos e isso se reflete até hoje”, afirma. Os jovens relatam que não conseguiram acompanhar bem as aulas durante a pandemia por motivos pessoais, dificuldade em estabelecer uma rotina e percepção de que os conteúdos não acrescentavam.

A professora Camila Alves, 23, que dá aulas de literatura e inglês no Cursinho Popular Paraisópolis, diz que falta um olhar direcionado do poder público para a realidade da periferia.

“Vemos que só vai funcionar numa escola que está bem-estruturada. Fala-se de escolher itinerários, preparar para o futuro e escolha da profissão. Não dá para falar sobre isso em um território em que falta professor, que falta estrutura”, diz ela, que defende ainda a formação dos professores para melhorar o cenário.

Para William Maciel, 25, também professor do cursinho, é preciso que essas mudanças sejam pensadas com a participação ativa de educadores. “Um empecilho é que a maioria das pessoas que pensam em educação no Brasil não são educadores. Temos no Brasil uma visão mercantil do que é a educação”, analisa.

Em nota, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo afirma que reformulou já para o ano letivo de 2024 o currículo do novo ensino médio com três opções de aprofundamentos: ciências da natureza com matemática; linguagens com ciências humanas e sociais aplicadas; e ensino técnico.

“Além da inserção de disciplinas comuns que são cursadas por todos os alunos a partir da 1ª série: Educação Financeira, Projeto de Vida, Redação e Leitura, e Aceleração para o Vestibular”, acrescenta.

De acordo com a pasta, “os estudantes escolhem o itinerário na 1ª série do ensino médio para cursar a partir da 2ª série, podendo mudar de área conforme as possibilidades de oferta das instituições”.

Sobre a estrutura das escolas, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirma que os os educadores da rede estadual recebem formações continuadas e que investe em melhorias.

“Na atual gestão foram encaminhados quase R$ 10 milhões em 2023 e, em 2024, até o momento, cerca de R$ 6,3 milhões em recursos financeiros do Programa Dinheiro Direto na Escola Paulista – PDDE Paulista para a Diretoria de Ensino Sul 1, responsável pela região de Paraisópolis. Os valores são destinados a reparos, consertos, adequações e serviços necessários à manutenção do patrimônio escolar”, afirma.

*Reportagem publicada em parceria com o jornal Folha de S.Paulo.

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Jornalista, repórter do Espaço do Povo e correspondente local de Osasco, na Grande São Paulo, na Agência Mural de Jornalismo das Periferias.

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