Gerações e identidade
Li quatro dos livros de Annie Ernaux, a francesa laureada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2022 (publicados no Brasil pela Editora Fósforo): “O lugar”, “Os anos”, “O acontecimento” e “A vergonha”.
Os escritos de Ernaux conformam uma espécie de autobiografia com fundo sociológico, revelando a transição da geração de seus pais – sem estudos e donos de um pequeno comércio numa cidade provinciana da França – para a dela, que teve acesso à universidade. Nessa passagem do tempo transitam sentimentos de inferioridade, horror à violência, pressão por costumes conservadores… enquanto o dia a dia flui na vida comum.
“O lugar”, que a própria autora recomenda como o primeiro de seus livros a ser lido, trata das relações de família, em especial com o pai, no entorno social em transformação: os pais procuram sobreviver e tentam melhorar de vida a partir do trabalho físico, enquanto almejam para os filhos o estudo e uma condição melhor, de menos esforço. Isso ocorreu com a autora, que pôde estudar, ser professora e depois escritora de sucesso. Além disso, pôde viver em cidades maiores e menos provincianas que as de sua infância, e se casou com um homem escolarizado e burguês.
Essa ascensão também estabelece uma espécie de “diferença familiar de classe” entre as duas gerações. Diz Ernaux: “Ao longo do verão, enquanto esperava meu primeiro cargo de professora, pensei: ‘um dia terei de explicar todas essas coisas’. Terei de escrever sobre meu pai, sobre a vida dele e sobre essa distância entre nós dois, que teve início em minha adolescência. Uma distância de classe, mas bastante singular, que não pode ser nomeada. Como um amor que se quebrou.”
De certa forma minha família – como tantas outras no Brasil – também viveu essa transformação. Até a geração de meus pais (quando crianças e jovens), a vida na zona rural exigia prioridade ao trabalho braçal, garantindo a sobrevivência do grupo. Meu pai, o mais velho de sete irmãos, começou a trabalhar na lavoura ainda criança, e somente pôde frequentar a escola rural por poucos meses. Ele contava: mesmo tão pequeno, tinha consciência de que não poderia ficar muito na escola, pois precisaria voltar ao trabalho na plantação, em tempo integral. Como as diferentes séries eram ministradas em conjunto, numa mesma sala de aula, para aproveitar mais a oportunidade, ele prestou atenção simultaneamente no que era ensinado aos alunos mais avançados. Foi assim que aprendeu a ler e a fazer contas, tornando-se, mais tarde, um comerciante que, em parceria com minha mãe, conseguiu criar com dignidade seus oito filhos. Com a humildade das pessoas simples que sempre foram, e com muito amor, meus pais superaram a “diferença de classe” em relação aos filhos (entendida na concepção de Ernaux), mantendo a família unida.
Annie Ernaux também trata do sentimento de inferioridade em relação às pessoas mais abastadas de seu convívio, por conta da transição do mundo de seus pais para o novo, ao qual ascendia. Em “Os anos”, falando na terceira pessoa, escreve: “As duas moças que estão com ela na foto são endinheiradas. Ela não se identifica com as colegas. Ela é mais forte e mais sozinha. De tanto andar na companhia delas e de irem juntas a festas, sente-se inferior. Também não se identifica com o mundo dos trabalhadores que pertence à sua família, com o pequeno comércio dos pais. Passou para o outro lado, mas não saberia dizer do quê.”
Em contraponto a essa melancolia disruptiva da autora, lembrei-me do que diz Gílson Rodrigues, Presidente do G10 Favelas – que construiu sua própria ascensão, de menino sem rumo a líder de milhões de pessoas –, referindo-se ao local onde fez sua vida: “Não quero melhorar de vida para sair da favela. Quero melhorar a favela – e a vida das comunidades – para ficar aqui!”. E é com essa identidade e ousadia que Gilson e seu time acessam empresas e executivos para atrair recursos e investimentos para as favelas. É com essa ousadia que mostram os empreendimentos do G10 na bolsa de valores em New York ou em Milão. Ou que organizam jantares de arrecadação de fundos nos locais mais chiques da cidade de São Paulo.
Dia destes li, aqui no “Espaço do Povo”, uma entrevista de moradora que confirma essa identidade com Paraisópolis: “Foi aqui que formei minha família, conheci pessoas e construí minha vida. Para mim, Paraisópolis se resume em uma palavra: casa.” Significa que os moradores têm orgulho e se identificam com o lugar e a comunidade. Como diz o slogan do G10: “Favela vai vencer!”
Essa reportagem foi publicada na versão impressa do jornal Espaço do Povo no mês de março (edição 92).
É mãe, avó e executiva do Grupo Folha e do Grupo UOL.