Divertidamente

 Divertidamente

Dia destes, encontrei-me com um filósofo que admiro muito, e o saudei com a pergunta: “Fora o mundo, tudo bem?” Não foi premeditado. A frase saiu de supetão, mas pensando a posteriori concluí que ela revela, ironicamente, o espírito do nosso tempo. Diferente do pacato universo local onde antes a maioria podia viver, agora estamos inseridos na aldeia global. As informações e os problemas do mundo rodeiam-nos o tempo todo.

De fato, há algumas gerações, as pessoas sabiam dos dramas da aldeia e das famílias. Agora, tentamos nos equilibrar na vida local, sabendo que as questões nacionais nos afetam, e que até os conflitos globais (embates no Oriente Médio, ou entre Rússia e Ucrânia, eleições norte-americanas etc.) podem ter impactos. Em consequência, nunca se falou tanto em burnout (exaustão emocional), com o excesso de informação e pressão recaindo sobre cada um.

As crianças são inseridas nesse caldeirão em fervura cada vez mais precocemente. Por isso, gostei muito da animação “Divertida Mente 1” (de 2015), mostrando as dificuldades infantis em lidar com as emoções (inclusive diante das mudanças impostas pela vida), que se tornam mais complexas com o crescimento. No desenho animado da Pixar as mensagens ganham especial didatismo com a personificação das emoções de uma garota atuando numa sala de controle (a mente dela): Raiva, Alegria, Tristeza, Medo e Nojo. Meus netos viram e aprovaram!

Sua continuação, “Divertida Mente 2” (de 2024), focada nos sentimentos predominantes na adolescência, é ainda melhor. Se a trajetória na infância – das emoções mais simples de um bebê à apreensão mais sofisticada das relações ao longo dos anos – já é desafiadora, as atribulações da puberdade (ensaio para a vida adulta) são ainda mais tempestuosas, em especial nos dias de hoje. Nesta segunda animação, a mesma garota da primeira reaparece às portas da adolescência, tentando inserir-se em um novo grupo de amigas no ensino médio, em meio a novas emoções em ebulição em sua mente: Ansiedade, Tédio, Inveja, Vergonha e Nostalgia. Meus netos (agora com 10 e 8 anos) também viram e, de novo, aprovaram!

Parece mais desafiador nascer no mundo atual. Mas não romantizemos o passado. Ser criança hoje significa ter mais atenção (às vezes, até demasiada) dos pais, e há muito mais conhecimento disponível sobre a complexidade emocional infantil (incluindo classificações de distúrbios que não tínhamos no passado). Agora sabemos que há interações intensas desde quando o bebê está na barriga da mãe, e que esse relacionamento é relevante na formação da criança. Em compensação, as cobranças aos meninos e meninas são agora mais sofisticadas: os desafios escolares e esportivos, compromissos sociais etc. E o que cada um será quando adulto?

A puberdade oferece dificuldades ainda maiores – não à toa, ansiedade é a palavra do momento. Não se trata de sentimento necessariamente negativo, exceto se em exagero, quando pode levar ao burnout. Essa fase é uma prova de fogo – mesmo sem os rituais de passagem tribais (como a dor física sem chorar para os meninos, e o isolamento temporário das meninas na primeira menstruação). A depressão adolescente existia também no passado, incluindo casos drásticos de suicídio (eu mesma tive dois casos entre primos); mas o assunto era tabu, e o “combinado” era esconder os fatos.

Agora temos um olhar mais atento para as dificuldades juvenis, exacerbadas pelos meios digitais e pelos padrões estereotipados de excelência física e comportamental. Além disso, vivemos numa espécie de episódio da série distópica “Black Mirror”: se estamos sendo filmados e comparados 24 horas por dia, não há como evitar o registro das bobagens que todo adolescente faz e fala. Uma derrapada pode significar a vida marcada para sempre por um episódio viralizado em redes sociais.

Nas animações “Divertida Mente”, a garota protagonista consegue reequilibrar-se após os maremotos emocionais. Isso não significa banir a ansiedade – seria irrealista. Ela entende que a vida não será só de momentos felizes, mas que é desejável e possível administrar as emoções. É exatamente o que devemos buscar a vida toda.

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É mãe, avó e executiva do Grupo Folha e do Grupo UOL.

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