Solidariedade e competência
Num papo recente com conhecidos, um deles comentou: “Acho que as pessoas se tornaram mais intolerantes na convivência social após a pandemia da Covid-19. Por exemplo, sinto que aumentaram os conflitos entre motoristas no trânsito da capital paulista”. Sua explicação: após tanto tempo de isolamento em casa, muitos se desacostumaram da convivência externa. Como não dirijo carros (ou qualquer coisa que se mova) por ser muito barbeira, não me senti apta a opinar.
Por outro lado, ponderei com eles: minha sensação é de que a pandemia, ao provocar mudança radical e inesperada na vida de todos, trazendo o temor da morte pelo desconhecimento sobre a doença, gerando dramas reais no nosso entorno e outros que os meios de comunicação mostravam diariamente, despertou, de forma inédita, a solidariedade entre os brasileiros. Era apenas um sentimento meu, sem qualquer embasamento em dados. Mas recentemente, comprovando minha tese, foi divulgado levantamento global mostrando que em 2021 o Brasil melhorou da 54ª para a 18ª posição no ranking do World Giving Index, pesquisa do instituto britânico Charities Aid Foundation que mede o quanto as pessoas fazem doações, agem de forma benéfica com desconhecidos e se envolvem em ações de voluntariado. As amostras, representativas de 90% da população mundial, incluem entrevistas de dois milhões de pessoas em 119 países.
A sensação que descrevi antes veio também de experiências pessoais: embora tenha sempre contribuído individualmente com entidades que amparam pessoas em situação de vulnerabilidade, e embora trabalhe em empresas que também costumam apoiar instituições do tipo, a necessidade de ajudar adquiriu uma dimensão inédita com a pandemia e – acho e espero! – isso veio para ficar.
Lembro-me de que após março de 2020, quando ficou claro ser a Covid muito mais do que uma “gripezinha”, afetando fortemente a economia e os empregos, muitas empresas decidiram socorrer pessoas com uma necessidade essencial e urgente: comida. Como organizadora desse movimento no grupo de empresas onde trabalho (há 32 anos), precisei (junto com uma equipe) me aproximar rapidamente de instituições sérias que pudessem levar as doações de alimentos a quem de fato precisava. Nessa seleção, usei a lista de instituições indicadas em sucessivos concursos anuais do Prêmio Folha de Empreendedorismo Social, que já tinham sido escrutinadas, portanto, eram confiáveis.
Dentre essas entidades selecionadas estava o G10 Favelas. Conheci líderes incríveis, que admiro muito (e felizmente há muitos!). Mas com o Gílson Rodrigues e seu time campeão a empatia foi especial, trazendo uma proximidade maior e duradoura. Alguns projetos nasceram dessa parceria, e outros com certeza vão surgir. O honroso convite para escrever neste “Espaço do Povo” sobre esses projetos – e sobre outros temas – faz parte dessa proximidade.
Além do prazer que essa parceria proporciona, tenho ainda a satisfação do aprendizado: esses líderes comunitários não são apenas pessoas do bem e obstinadas, mas são também absolutamente competentes. As mesmas competências exigidas dos executivos nas grandes empresas são encontradas fartamente nas favelas. São criativos para propor soluções urgentes; têm tino comercial para angariar fundos e tornar os projetos sustentáveis; são marketeiros eficientes para juntar os interesses da comunidade com as marcas das empresas; mostram as favelas como oportunidades de negócios, e não apenas como comunidades que (também) precisam de ajuda.
Essa mistura de solidariedade e competência pode, sem dúvida, ajudar a mudar a cara deste Brasil tão sofrido, mas também tão interessante e vivo.
É mãe, avó e executiva do Grupo Folha e do Grupo UOL.