Rebouças

 Rebouças

Crédito: Reprodução

No meu dia a dia, transito entre as sedes dos grupos empresariais onde trabalho, na capital paulista. No caso do Grupo Folha, onde estou há 32 anos, o prédio icônico fica na Alameda Barão de Limeira, no centro da cidade, região bela (por seus prédios antigos) mas degradada. O nome da rua homenageia o Barão de Limeira, vereador da cidade de São Paulo. Diversos outros personagens dessa aristocracia tupiniquim, criada pela família real no Brasil durante o século XIX (como forma de arrecadação para manter a Corte) estão nas alamedas ao redor (Barão de Campinas, Barão de Piracicaba, Barão de Tatuí etc.).

Em outros dias, trabalho na Avenida Brigadeiro Faria Lima, na sede do Grupo UOL (do qual faço parte desse seu início, em 1995). Essa famosa avenida virou referência do mundo financeiro, e seus personagens receberam recentemente o irreverente apelido de Farialaimers, homens do mercado financeiro que usam linguajar específico do setor, certo padrão de roupas etc. Faria Lima foi prefeito da capital nos anos 60.

Para ir de uma sede a outra é inevitável transitar pela Avenida Rebouças. Eu já ouvira falar, de forma superficial, desse engenheiro negro que dá nome à agitada rua. Lendo o terceiro volume da trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes (após percorrer os dois livros anteriores da série), entendi um pouco mais a grandeza desse abolicionista.

Como se sabe, o Brasil foi o último país da América Latina a decretar, em 1988, o fim dessa triste passagem da História. Mais de três séculos da economia brasileira foram vividos nesse modelo espúrio que sustentou a agricultura exportadora (cana-de-açúcar e depois café) e a extração de ouro e pedras preciosas (principalmente nas regiões das Minas Gerais) enviados a Portugal.

Quando as pressões externas (sobretudo da Inglaterra) e as pressões internas aumentaram para o fim da escravatura, alguns abolicionistas brasileiros tiveram papel especial: um branco abastado (Joaquim Nabuco), dois negros com famílias de posses (José do Patrocínio, filho de um padre e André Rebouças, filho de um jurista e conselheiro do Império) e Luiz Gama, que foi vendido como escravo pelo próprio pai, aos 10 anos.

Rebouças teve uma história especial: embora tivesse a pele negra, foi se “descobrir negro” quando adulto. Formado em engenharia no Rio de Janeiro, estudou também na Europa e frequentava a Corte. Mas o tratamento decente recebido no Brasil e na Europa não se repetiu em sua viagem aos Estados Unidos, onde não foi aceito em hotéis e restaurantes por ser negro, mesmo tendo dinheiro. Sentir na pele o preconceito fez Rebouças se envolver profundamente nos movimentos abolicionistas no Brasil, manifestando-se por escrito (em jornais e outros textos), conferências etc. Argumentava não bastar a abolição, mas ser fundamental possibilitar o trabalho aos ex-escravos, pela concessão de terras que os tornassem pequenos produtores independentes. Morreu no exterior, depressivo, provavelmente por suicídio.

Mesmo após a abolição, o Brasil viveu ainda muitas décadas dentro de uma visão romantizada de “democracia racial”, como se o preconceito não existisse.  Só mais recentemente começamos a enxergar, com alguma luz, o verdadeiro enredo. Por isso, se fizermos muito, e rápido, ainda será pouco, mas estamos no caminho certo ao implementar ações afirmativas. Muitas empresas estão adotando medidas nessa linha, criando vagas qualificadas exclusivas para negros, mulheres etc., de forma a promover maior diversidade interna.

Apesar de tudo, dos séculos de opressão, o Brasil é um país com profundas raízes africanas, e os principais símbolos culturais brasileiros têm essa origem. Apenas citando alguns: a comida típica (feijoada), a bebida (cachaça, surgida nas fazendas canavieiras onde trabalhavam os escravos), a música (o samba e tantos outros ritmos maravilhosos), a festa mais icônica (Carnaval), a arte marcial (capoeira), o escultor mais famoso (Aleijadinho), o escritor considerado mais relevante do país (Machado de Assis) etc.

No último dia 27 de junho compareci a um jantar solidário promovido pelo G10 Favelas no Palácio Tangará, hotel 5 estrelas de São Paulo. O objetivo foi arrecadar fundos para o Natal solidário de 2022, visando apadrinhar crianças carentes e ajudar 10 mil famílias. Muitas pessoas e empresas apoiaram a iniciativa (inclusive o Grupo UOL, onde trabalho). Um sucesso!

Foi uma festa, mas também um momento de reflexão. Fujo como o diabo da cruz de jantares e eventos corporativos, em geral chatos e formais, cheios de homens brancos endinheirados e preocupados em ostentar poder (embora também encontre pessoas inteligentes e humanas). Este jantar solidário do G10, ao contrário, foi como um sonho: executivos de alto escalão de grandes empresas se misturavam a artistas e a moradores da favela, brancos e negros em igual quantidade, interagindo como iguais (que são!). O mundo está em mudança e nunca se falou tanto da necessidade de vencer as desigualdades sociais (inclusive as raciais) e os preconceitos relativos a gênero. Estar naquele ambiente tão diversificado foi emocionante. Parecia uma visão idílica de como o mundo pode ser muito melhor!

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É mãe, avó e executiva do Grupo Folha e do Grupo UOL.

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