Vício em jogos online faz periferia perder mais do que já faltava em SP

 Vício em jogos online faz periferia perder mais do que já faltava em SP

Foto Allison Sales/Folhapress

“É como tentar segurar vento.” Assim Joana Dias, 26, descreve a situação vivida pela família em razão das apostas do ex-marido. Com a casa e um filho recém-nascido para cuidar, a moradora do bairro de Interlagos, zona sul de São Paulo, viu o sonho de um lar feliz escapar pelos dedos.

“Chegaram a faltar coisas dentro de casa, meu dinheiro não dava. A nossa renda era de quase R$ 6.000, porém a gente passava muita dificuldade”, diz.

O entusiasmo pelo dinheiro rápido deu lugar inicialmente à depressão, à privação do sono e à perda de saúde mental e física durante o período pós-parto. Depois vieram as ameaças do ex-companheiro. “Eu dizia que não emprestaria mais dinheiro, aí começaram as ameaças para eu fazer o Pix pra ele.”

Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva em agosto de 2024 mostrou que, apenas neste ano, 25 milhões de brasileiros passaram a apostar em jogos online e bets, média de 3,5 milhões de novos jogadores por mês. Destes, 86% estão endividados e 64% estão com o nome sujo na praça.

O número de pessoas que sonham em ganhar dinheiro por meio de apostas avançou principalmente entre os mais pobres: 80% dos jogadores estão nas classes C, D e E. Além disso, 53% são homens e 40% têm entre 18 e 29 anos.

Na periferia, a vontade de enriquecer se alia à necessidade de resolver questões financeiras dentro de casa. “Uma vez eu precisava de um dinheiro, então eu apostei R$ 10 e ganhei R$ 100, nisso eu pensei, o dinheiro está vindo”, afirma Laryssa Silva, 28, moradora de Paraisópolis, também na zona sul.

Ela diz que a ideia veio das redes sociais. “Fiquei curiosa, mas o pessoal só mostrava o lado que ganhava”, afirma ela, que apostava em jogos online como Fortune Tiger e Aviator, conhecidos como “jogo do tigrinho” e do “aviãozinho”.

Com o tempo, as contas de casa deixaram de ser prioridade, e ela chegou a perder R$ 600 numa semana. “Já gastei um salário todo, já deixei de pagar até aluguel. Eu ganhava e perdia, ganhava e perdia. Quando percebi, já não tinha mais nada”, afirma Laryssa.

Após ficar sem itens básicos dentro de casa devido à rotina de apostas, Laryssa diz que decidiu dar um basta na situação. “Eu fiquei com muita conta acumulada, faltando as coisas em casa, aquilo foi me deixando triste.” Para conseguir parar de jogar, se apegou a sua fé. “Até fiz uma promessa, eu necessitava parar para poder pôr as coisas em ordem. Não jogo mais, parei já, graças a Deus.”

Fora a intenção de ganhar dinheiro, a facilidade de acesso às apostas online é um atrativo para os mais jovens das periferias, que encontram no mundo das bets também uma opção de lazer e distração.

“No início eu tinha um pouco de receio de perder dinheiro, mas comecei a apostar por causa do lazer”, diz Victor Correia, 19, morador de Taboão da Serra, na Grande São Paulo.

O estudante diz que pagava de R$ 80 a R$ 100 por aposta.

Não por acaso o valor investido em lazer e cultura dentro das casas brasileiras nas classes D e E tem diminuído, como mostra a pesquisa “O impacto das apostas esportivas no consumo”, da Strategy&. Enquanto a participação dos gastos em lazer e cultura no orçamento caiu 13% em cinco anos, o índice de apostas quintuplicou —passou de 0,27% a 1,35% entre as famílias mais pobres, enquanto na população geral os jogos consumiam 0,73% do dinheiro doméstico em 2023, três vezes mais que em 2018.

O gosto pelos jogos disputa espaço com as dancinhas do TikTok e as trends do Instagram, além do conteúdo ensinado nas escolas.

Grazielle Mendes, 24, professora que leciona no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, sente na pele as dificuldades de disputar atenção dos alunos com os joguinhos de azar durante as aulas. “Uns 80% deles apostam e ficam mostrando um para o outro quanto estão apostando. E isso o dia inteiro durante o período de aula.”

A professora conta que a maioria dos estudantes segue influenciadores que divulgam jogos, e muitos jovens também fazem parte dessa rede. “Eu tenho três alunas que têm uma quantidade boa de seguidores, elas fazem conteúdo e divulgam joguinhos online“, diz.

Além das apostas online, dentro das periferias existem também as bets físicas, conhecidas como “bancas”. São pontos em que agiotas disponibilizam créditos altos para pessoas realizarem apostas em seus estabelecimentos. “Meu limite na banca era R$ 40 mil”, afirma Jonatas Santos, 25, morador de Osasco, na região metropolitana da capital. “Minha maior perda em uma semana foi de R$ 13 mil, fiquei devendo à banca, os caras são agiotas e você não pode ficar devendo.”

Nos últimos 12 meses, os apostadores brasileiros perderam cerca de R$ 23,9 bilhões em jogos de azar online, segundo estudo produzido pelo banco Itaú. “As minhas perdas no total chegaram a R$ 100 mil em três anos e meio”, diz Jonatas. “Mas meu relato é fichinha perto de uns amigos meus.”

*Reportagem publicada em parceria com o jornal Folha de S.Paulo.


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Repórter do Espaço do Povo, é cria do Jardim Ângela, formado em jornalismo e tem vivência em redação e assessoria de imprensa.

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